COVID E A VULNERABILIDADE DO CIDADÃO CONTRIBUINTE NA RELAÇÃO TRIBUTÁRIA E PROCESSUAL TRIBUTÁRIA
Hugo de Brito Machado Segundo - noiembrie 26, 2021Introdução
A epidemia causada pelo novo corona vírus (COVID19) lançou desafios importantes para a humanidade, os quais se refletem, inclusive e principalmente, nas finanças públicas dos Estados de todo o mundo. No que tange particularmente à atividade financeira do Estado, o impacto foi duplo, o que potencializou seus efeitos. De um lado, assistiu‑se a uma queda na arrecadação, causada pela sensível diminuição no exercício de atividades econômicas, consequência do confinamento imposto para conter a propagação do vírus. De outro, um aumento considerável nos gastos públicos, seja na prestação de serviços ligados à saúde pública, no trato das pessoas acometidas pela doença, seja na concessão de auxílios àqueles cidadãos que viram suas fontes de renda cessar e necessitavam de meios para subsistir.
Diante disso, e do considerável efeito da diminuição das receitas e do aumento das despesas públicas, o presente estudo visa a examinar quais consequências foram observadas no que tange à situação do cidadão contribuinte. Objetiva‑se aferir os efeitos do incremento da pressão por recursos públicos, no âmbito do Poder Judiciário, sobre a apreciação equitativa e imparcial dos conflitos surgidos entre Fisco e contribuintes.
1. A natureza dos depósitos judiciais
No final dos anos 90 do Século passado, a Lei 9.703/98 modificou a maneira como se fazem os depósitos judiciais, no plano federal, no que tange às questões que discutem a cobrança de tributos. Até então feitos na Caixa Econômica Federal, em conta comum que apenas permanecia à disposição do juízo, passaram, com o advento da referida lei, a ser creditados à Conta Única do Tesouro Nacional.
O depósito deixou de permanecer à disposição de um terceiro, o juízo, passando a ser desde logo entregue a uma das partes, a título “provisório”. O pagamento se transforma em um “pagamento definitivo”, caso o contribuinte sucumba em sua demanda. Na hipótese contrária, de êxito do contribuinte, o valor é devolvido sem a necessidade de precatório. Os possíveis vícios inerentes a essa modificação, contudo, não chegaram a ser mais energicamente questionados por contribuintes, por conta da remuneração dos depósitos pela SELIC, à época bastante elevada (art. 1.º, § 3.º, I, da Lei 9.703/98). O assunto, assim, restou adormecido.
Merece destaque o fato de que, em qualquer das hipóteses inicialmente indicadas, o contribuinte possui, em tese, alternativas ao depósito. Isso não se modificou com a Lei 9.703/98. Muitas vezes, a escolha entre realizar o depósito, ou pleitear uma tutela, ou garantia a execução com bens, ou com uma fiança, depende das circunstâncias. O depósito tem a vantagem de dispensar qualquer deliberação ou autorização, e, sobretudo, de retirar do sujeito passivo a preocupação com os juros incidentes sobre a dívida, que passam a correr por conta da entidade que mantiver o depósito consigo. Contribuintes em situação de maior dificuldade, contudo, podem preferir pleitear uma tutela provisória, ou, no caso de execução, garanti‑la de outra forma, para assim preservar alguma disponibilidade em seu caixa, necessária ao normal andamento de suas atividades.
Foram justamente as circunstâncias inerentes a este cenário que se alteraram, com o advento da COVID19 e das medidas destinadas ao seu enfrentamento. Nesse contexto, contribuintes que realizaram depósitos judiciais em um período de maior liquidez e conforto financeiro, e que durante a pandemia enfrentaram graves dificuldades de caixa, resolveram pleitear a substituição da garantia apresentada. Sabe‑se que, em uma execução, os bens penhorados podem ser substituídos por outros, desde que haja anuência do exequente. Mas a anuência sequer é necessária, caso a substituição seja por dinheiro. E a legislação equipara outras formas de garantia, para esse efeito, ao dinheiro. É o caso da fiança bancária e do seguro garantia, a teor, por exemplo, dos arts. 835, § 2.º, e 848, parágrafo único, do CPC.
Munidos de cartas de fiança, ou de seguros garantia, em valor equivalente ao do débito, acrescido de 30%, contribuintes pleitearam a substituição, alegando a completa mudança no cenário diante do qual realizaram o depósito, a necessidade dos recursos para a sobrevivência da empresa e dos que dela dependem, e a expressa previsão em lei. Ao chegarem ao Superior Tribunal de Justiça, porém, os pedidos formulados nos termos explicados acima foram indeferidos.
Vários fundamentos foram utilizados para embasar os indeferimentos, mas não é o caso de examiná‑los todos aqui. O propósito deste texto não é aprofundar essa questão, referente à garantia do juízo no processo tributário, ou mesmo criticar o indeferimento dos pedidos de substituição em si. A ideia é verificar o quanto a tentativa de substituição da garantia serviu para escancarar a verdadeira natureza dos depósitos, o que pode permitir algumas conclusões ou desdobramentos.
Realmente, quando se usa, por exemplo, como fundamento, a circunstância de que a atividade da requerente teria sido considerada essencial e não teria sido embaraçada pela pandemia, isso não guarda qualquer relação com a natureza do depósito aqui discutida. Entretanto, chamam a atenção os seguintes fundamentos, que também apareceram em decisões denegatórias de tais requerimentos:
Quanto ao mais, registre‑se que a conjuntura excepcional trazida pela pandemia do Coronavírus (COVID‑19) não legitima que sejam adotadas medidas que prestigiem o interesse individual da empresa, seus sócios, trabalhadores, clientes e fornecedores por sobre o interesse coletivo de toda a sociedade (interesse público). Decerto, fossem liberados todos os depósitos judiciais efetivados em garantia de ações tributárias por todo o Brasil, o Poder Público restaria privado de importantes recursos que já estão sendo utilizados em diversas políticas públicas de combate à pandemia e seus efeitos de toda ordem (política, social, econômica, de saúde, educacional, científica etc.). Isto porque os depósitos já efetuados ingressam automaticamente na Conta Única do Tesouro Nacional, sendo de livre disponibilidade do ente político (obedecendo a vinculação constitucional de receitas tributárias), e a sua devolução se dá mediante débito nessa mesma conta (art. 1º, §§2º e 4º, da Lei n. 9.703/98). Nunca é demais lembrar que a arrecadação em depósitos judiciais no âmbito da Procuradoria‑Geral da Fazenda Nacional ‑ PGFN é expressiva correspondendo, em 2019, a mais de R$ 7 bilhões de um total de aproximadamente R$ 24,7 bilhões arrecadados. Ou seja, corresponde a mais de 28% do volume arrecadado (in PGFN em números. Disponível em: <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias/2020/procuradoria‑geral‑da‑fazenda‑nacional‑divulga‑o‑201cpgfn‑em‑numeros201d‑com‑os‑dados‑de‑2019/view>. Acesso em: 17.04.2020). Projetando‑se essa mesma participação para a arrecadação de procuradorias estaduais e municipais por todo o Brasil (pois as decisões do STJ são paradigmáticas e influenciam o comportamento do Poder Judiciário como um todo), seria inimaginável retirar do Poder Público a disponibilidade de tamanha quantia em um momento tão critico como o presente. Tal conduta evidenciaria violação ao art. 20, da LINDB: „Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (Decreto‑Lei n. 4.657/42).” (PET no REsp 1.706.203–SP)
Dois pontos merecem destaque na fundamentação acima. O primeiro é a alusão ao interesse público, que estaria sendo contrastado com o “mero” interesse individual de um grupo tão grande de pessoas, a incluir a “empresa, seus sócios, trabalhadores, clientes e fornecedores”. E, o segundo, o reconhecimento de que se trata de receita pública, utilizada pelo Poder Público e nessa condição impossível de ser momentaneamente restituída aos proprietários das quantias depositadas. Sim, até o trânsito em julgado de uma sentença de improcedência, em tese, os depósitos continuam pertencendo ao depositante, lógica que parece ter sido subvertida pela Lei 9.703/98, subversão que só agora vem mais claramente à superfície.
Mas as decisões que negam a liberação dos depósitos, mediante substituição da garantia, não apenas confirmam que a Lei 9.703/98 realmente extinguiu a figura do depósito, criando um pagamento seguido da possibilidade de restituição direta, independentemente de precatório. Elas revelam ainda a disparidade com que as questões tributárias são enfrentadas pelo Judiciário, relativamente àquelas que tem partes diversas do próprio Poder Público. Isso porque, apreciando questões não tributárias, o mesmo Superior Tribunal de Justiça não vê qualquer problema na substituição pretendida, tendo decidido, por exemplo, que:
O seguro garantia judicial oferece forte proteção às duas partes do processo, sendo instrumento sólido e hábil a garantir a satisfação de eventual crédito controvertido, tanto que foi equipado ao dinheiro para fins de penhora. De fato, no cumprimento de sentença, a fiança bancária e o seguro garantia judicial são as opções mais eficientes sob o prisma da análise econômica do direito, visto que reduzem os efeitos prejudiciais da penhora ao desonerar os ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução, além de assegurar, com eficiência equiparada ao dinheiro, que o exequente receberá a soma pretendida quando obter êxito ao final da demanda. Considerando‑se que o legislador equiparou expressamente a fiança bancária e o seguro garantia judicial ao dinheiro, isto é, que não existe diferença para fins de garantia do juízo, não há margem para que o exequente discuta a sua aceitação, ressalvados os casos de insuficiência ou inadequação da garantia. Nesse contexto, por serem automaticamente conversíveis em dinheiro ao final do feito executivo, a fiança bancária e o seguro garantia judicial acarretam a harmonização entre o princípio da máxima eficácia da execução para o credor e o princípio da menor onerosidade para o executado, a aprimorar consideravelmente as bases do sistema de penhora judicial e a ordem de gradação legal de bens penhoráveis, conferindo maior proporcionalidade aos meios de satisfação do crédito ao exequente (Pet no REsp 1.787.457‑SC).
Como se percebe, fundamentos diversos dos usados quando se trata da Fazenda Pública, sendo certo que a lei processual foi vista como a impor, e não a vedar, a substituição pretendida. A diferença, neste caso, é que no processo em que a substituição foi aceita as partes eram Tim Celular S/A e Aline Weiss Silveira. Nitidamente, o fato de ser a Fazenda Pública, e de ela se ter apropriado do depósito, contribuiu para que as mesmas normas processuais fossem compreendidas de modo completamente diverso.
Quanto ao “interesse público” que poderia estar subjacente a essa distinta forma de compreender a lei processual, lembre‑se que ele foi contrastado, pela decisão que negou a substituição, com o “mero interesse individual” da empresa contribuinte, de seus empregados, sócios e fornecedores. Um número de pessoas que pode ser bastante grande, o que por si só já colocaria em dúvida o uso da expressão “interesse individual”. A expressão “interesse público”, ao que parece, foi usada como mantra eufemístico para a mera razão de Estado, pois além de o principal interesse público ser o respeito à lei, é do interesse de todos, por igual, a manutenção da economia e da saúde das empresas. Tanto que o Poder Público não apenas incrementou gastos com saúde no combate à pandemia e aos seus efeitos; ele também adotou políticas de auxílio, prorrogação de prazo para cumprimento de obrigações acessórias etc.
Quanto ao argumento de que “se todos fizerem o mesmo, os efeitos serão catastróficos”, inclusive com invocação da LINDB, ele, com todo o respeito, é o que menos procede neste cenário. Além de não ser admissível seu uso genérico e não fundamentado, a teor do art. 489, § 1.º, II, do CPC, esse argumento em verdade depõe contra a validade da Lei 9.703/98: de fato, se todas as ações forem julgadas em tempo recorde, e tiverem seus pedidos julgados procedentes, seguindo‑se uma redução da litigiosidade e do ingresso de novas ações, não se terá o mesmo resultado “nefasto”? Será isso então justificativa para o Judiciário cozinhar os processos, e julgar‑lhes improcedentes os pedidos, para não ter de devolver os recursos depositados?
A principal lição que a transformação havida nos depósitos judiciais revela, contudo, é de longo prazo, voltada a uma possível reforma no sistema processual tributário brasileiro, notadamente no que tange à restituição do indébito. Trata‑se da sistemática de precatórios.
Com a Lei 9.703/98, confirma‑se uma ideia que já pode ser suscitada a partir das requisições de pequeno valor – RPV: a de que os pagamentos feitos pelo Poder Público, em razão de condenações judiciais, não precisariam ser incluídos no orçamento apenas depois de encerrado o cumprimento de sentença, para satisfação, no melhor dos cenários, somente a partir do exercício subsequente. A Constituição poderia ser modificada para que o processo fosse sensivelmente abreviado, aproximando o cumprimento de sentenças no Brasil dos exemplos existentes em outras partes do mundo. Atualmente, com exceção dos precatórios, todas as despesas constantes de um orçamento público são previsões. Faz‑se uma estimativa de quanto será gasto com cada item, alocando‑se recursos para tanto, permitindo‑se assim o pagamento mais célere. Também as condenações judiciais, todas elas, poderiam entrar nesse rol. Os depósitos judiciais, com o advento da Lei 9.703/98 e deste reconhecimento covidiano dos verdadeiros efeitos da transformação por ela operada, complementam essa amostra, por representarem exemplo de verdadeiro pagamento seguido da possibilidade de restituição sem precatório.
2. O Plenário Virtual, no Supremo Tribunal Federal, e as alterações jurisprudenciais havidas no período
Tem sido noticiado na imprensa, com alguma ênfase, o fato de que o Supremo Tribunal Federal, nas sessões que realizou durante a pandemia da COVID19 no ano de 2020, julgou quase quarenta “teses” em matéria tributária. Aproximadamente o dobro do que se apreciou, relativamente a esse ramo do Direito, nos últimos quatro anos somados. E, ao fazê‑lo, teria permitido à União “economizar” entre 500 e 600 bilhões de reais, pois das quase quarenta, trinta e uma foram julgadas favoravelmente à Fazenda Pública.
O fato é preocupante, principalmente se examinadas as suas causas, e suas possíveis consequências.
Não se devem interpretar julgamentos favoráveis à Fazenda Pública, na solução de lides tributárias, como fatores de “economia” de recursos públicos. Até porque, se o julgamento fosse desfavorável, não haveria “gasto”, “prejuízo” ou “perda”, mas tão somente a recomposição do patrimônio dos cidadãos, indevidamente desfalcado por uma exigência ilegal.
Que a mídia faça isso, partindo de uma compreensão não especializada do que se discutia em tais julgamentos, compreende‑se. Que a Advocacia Pública assim proceda, na tentativa de valorizar a própria atuação, também. Mas que o próprio Conselho Nacional de Justiça aja desta maneira, é no mínimo lamentável. E, sim, o CNJ procura justificar as despesas do Poder Judiciário com o fato de que ele seria “superavitário” porquanto “arrecada” quantia superior aos seus gastos, ao julgar questões tributárias.
A função do Poder Judiciário não é arrecadar, sendo muito preocupante que se procurem justificar os gastos nos quais ele incorre com o fato de que ele “gera” para a Fazenda receita a tanto suficiente. Que parcialidade pode ter o órgão que julga uma questão envolvendo a Fazenda Pública, se um resultado a ela favorável será visto como motivo para que dela se recebam vantagens, sob a forma de recursos a serem aplicados em seu favor? Nenhuma.
Pode estar, porém, a leitora a perguntar: e o que isso tem a ver com a sistemática de Plenário Virtual do STF, e com a pandemia? A relação com a pandemia talvez seja de mais fácil percepção: o Judiciário, se se sente no dever de “arrecadar” e assim financiar os cofres públicos, vê essa sua responsabilidade redobrada diante da pandemia, que leva a uma contração das receitas públicas, decorrente da própria diminuição na atividade econômica, e a um aumento das despesas ligadas ao enfrentamento da doença e de seus efeitos. Mas, se é indevida a assunção da responsabilidade de “arrecadar” por parte do Judiciário, igualmente descabido é considerar que maiores gastos aumentariam essa responsabilidade. Principalmente se se considerarem os motivos pelos quais as receitas públicas diminuíram e as despesas aumentaram, os quais por igual assolam os que integram o setor privado, prejudicado por tal papel “arrecadatório” assumido pelo Judiciário.
Já o Plenário Virtual guarda relação menos evidente, embora igualmente preocupante, por somar‑se aos apontados fatores e assim conduzir a verdadeiro massacre ao princípio do devido processo legal, e, com ele, à própria ideia de Estado de Direito.
Não se deve confundir Plenário Virtual com julgamentos feitos com o auxílio de meios eletrônicos de comunicação. Não se está referindo, com efeito, a julgamentos ocorridos nos vários tribunais do país, com o uso de plataformas como o zoom, nos quais julgadores relatam casos, advogados realizam sustentações orais e em seguida se estabelece um debate real, ainda que à distância. Não. O Plenário Virtual é outra coisa.
Vale conferir o que consta do site do próprio STF a respeito desta figura:
“Criado em 2007, o Plenário Virtual é um sistema que permite aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) deliberarem se determinada matéria apresenta ou não repercussão geral, pré‑requisito introduzido pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004 (Reforma do Judiciário) para admissibilidade de Recurso Extraordinário (RE). Um dos objetivos da reforma foi o de reduzir a quantidade de causas remetidas à última instância do Judiciário, permitindo ao STF se dedicar a questões mais relevantes.
A partir do momento que um tema é incluído no sistema, os ministros têm 20 dias para votar. Nos casos em que o relator reconhece a existência de repercussão geral, para sua recusa, de acordo com a Constituição Federal, é necessária a manifestação expressa de pelo menos oito ministros. O Plenário Virtual funciona 24 horas por dia e é possível que os ministros o acessem de forma remota, permitindo a votação mesmo estando fora de seus gabinetes. Entre os principais temas com repercussão geral reconhecida estão as questões eleitorais, criminais e econômicas.
Uma reforma no Regimento Interno do STF em junho de 2016 passou a permitir também o julgamento de alguns recursos internos (Agravo Interno e Embargos de Declaração) por meio do Plenário Virtual da Corte.
Além de dar celeridade à análise de temas relevantes, o Plenário Virtual também oferece transparência no acompanhamento das decisões. Até novembro de 2008, apenas os ministros e os tribunais cadastrados tinham acesso ao sistema, mas os ministros do Supremo decidiram ampliar o acesso, permitindo o acompanhamento pela sociedade dos julgamentos sobre existência de repercussão geral.
A consulta está disponível no link Plenário Virtual na página do STF e permite acompanhar o voto de cada ministro acerca da existência de repercussão geral em determinado tema.”
Quando um processo é incluído nessa sistemática, que não é mais usada apenas para debater se há ou não repercussão geral, sendo em verdade empregada no trato de qualquer matéria pelo STF, não há deliberação efetiva. Não há debate. Não há contraditório. Inserem‑se no sistema o relatório; as sustentações orais, que são gravadas previamente pelos advogados e enviadas; e os votos de cada Ministro. E, ao final, se anuncia o resultado.
Como se percebe, o emprego da sistemática permite, primeiro, que os Ministros votem sem sequer abrir o arquivo em que constam as sustentações orais dos advogados, ou mesmo os votos dos colegas. O debate, que já não ocorria de maneira satisfatória mesmo em sessões presenciais tradicionais, é completamente esvaziado.
Poder‑se‑ia dizer que isso prejudicaria a ambos os lados, advogados públicos e privados, pois a sustentação de todos eles é inserida em arquivo gravado, de maneira assíncrona, sendo por igual passível de desatenção pelos julgadores. Por que, então, o Plenário Virtual levaria a prejuízo aos contribuintes apenas?
Primeiro, pelas razões anteriormente indicadas, de o Judiciário considerar‑se portador da missão de arrecadar, até como forma de legitimar ou justificar seus próprios gastos. Só isso já seria suficiente para que a falta do debate prejudicasse fortemente aquele encarregado de tentar convencê‑lo a não exercer essa missão diante do que se pretende apontar como sendo uma cobrança feita em violação ao ordenamento jurídico. O outro lado não precisa fazer nada.
Mas não só. Há, ainda, um fato que precisa ser mais amplamente debatido: a circunstância de Ministros de Cortes Superiores terem, entre seus assessores, advogados públicos, notadamente Procuradores de Fazenda. É inegável que tais assessores, por menor que seja a autonomia que eventualmente se lhes conceda na confecção de decisões e votos, poderão de algum modo contribuir, ainda que involuntariamente, para que prevaleça a tese favorável ao ente público ao qual servem, em cargo do qual estão apenas temporariamente licenciados.
O mais grave, porém, é que a sistemática do Plenário Virtual leva a julgamentos nulos, por vício na fundamentação, porquanto não se pronunciam sobre os fundamentos, empregados no processo, que seriam capazes de infirmar as conclusões a que chegaram (CPC, art. 489, § 1.º, IV). Veja‑se que o CPC não se reporta apenas a argumentos usados pelas partes. Refere‑se àqueles que constam do processo, o que abrange inclusive razões invocadas por outros votos, divergentes, os quais não podem ser simplesmente ignorados por aquele que abraça tese diversa. Não há obrigação de um Ministro concordar com ninguém, mas existe o dever, constitucional, desdobrado no CPC, de explicar os motivos da discordância.
A questão é mesmo epistemológica. Nenhuma crença, seja ela a que subjaz a uma teoria científica, seja a que ampara uma decisão, administrativa ou judicial, será jamais definitivamente justificada. Todo argumento apresentado como justificativa pode, enfim, ser desafiado por nova cobrança de fundamentos: e por quê? Mas uma crença, seja ela a que subjaz a uma teoria científica, ou a uma decisão judicial, pode ser considerada suficiente e satisfatoriamente fundamentada, quando aquele que a justifica puder encerrar, ainda que provisoriamente, a cadeia de justificativas que é cobrado a apresentar, devolvendo a quem lhe cobra fundamentos a pergunta: e por que não? É essa a razão pela qual o art. 489, § 1.º, IV do CPC, em explicitação do óbvio (dentre tantas outras que constam do mesmo parágrafo), esclarece que a falta de resposta para argumentos surgidos no processo e capazes de infirmar a decisão a fazem não fundamentada.
E o Plenário Virtual, pela sua própria forma de funcionamento, permite aos Ministros proferirem, como dito, votos que ignoram os pronunciamentos dos colegas que os antecederam na votação, e, com mais eloquência ainda, as manifestações dos patronos das partes. Isso faz com que todas as razões apontadas na tentativa de demover o Judiciário de sua função arrecadatória, na peleja de mostrar‑lhe que uma invalidade grave impede que a missão seja exercida naquela situação, sejam simplesmente ignoradas. Daí por que dos 37 temas apreciados, 31 foram favoráveis à Fazenda.
Não seria isso, porém, decorrente do fato de a Fazenda ter mesmo razão nesses 31 temas que lhe foram julgados favoravelmente? Improvável, embora não impossível. Sobretudo se se considerar que, na maior parte deles, o STF deu às costas não só ao que os advogados diziam da tribuna – ou dos arquivos eletrônicos armazenados no Plenário Virtual – mas à sua própria jurisprudência, sem sequer apontar os motivos de possíveis superações ou overrullings.
Em verdade, não são os especialistas na matéria, os advogados dos contribuintes ou a jurisprudência do próprio STF construída ao longo de décadas que estão todos errados. Eles simplesmente não foram ouvidos, prevalecendo apenas o clamor do Fisco, incorporado no próprio relatório do CNJ, de que se lhe permita maior arrecadação.
3. Poder Judiciário e “tríplice função”
Os apontados exemplos talvez mostrem, ou confirmem, que a relação jurídica tributária, diversamente daquelas que usualmente se estabelecem à luz das normas de outros ramos do Direito, é ainda embrionária, no que tange mesmo à sua juridicidade. Fruto de revoluções havidas como resistência a abusos verificados na cobrança de tributos (e também, embora em menor medida, em sua aplicação), as limitações jurídicas impostas ao poder de tributar dependem da edição de leis pelo Legislativo, da sua regulamentação e aplicação pelo Executivo, e do julgamento dos conflitos daí decorrentes pelo Poder Judiciário.
Tal circunstância faz com que o credor tributário seja o único, no sistema jurídico, dotado da tríplice função de elaborar a regra que disciplinará o surgimento da relação jurídica obrigacional, regulamentar sua aplicação, aplicá‑la, e em seguida julgar os conflitos eventualmente surgidos com o devedor, sujeito passivo da obrigação. A separação de poderes ou funções é uma tentativa de minimizar os efeitos de essas três funções serem titularizadas pelo próprio credor, mas seus eficácia, para esse fim, é pequena, quando, como se vê no caso, se está diante de questões tributárias em torno das quais os interesses dos três poderes são convergentes ou equivalentes. Desaparece a imparcialidade que a atividade jurisdicional usualmente ostenta quando da apreciação de outras espécies de conflito.
Considerações finais
A pressão exercida pela pandemia COVID19 talvez tenha contribuído para mostrar que, no enfrentamento de questões tributárias, o Poder Judiciário não possui a imparcialidade e o distanciamento que lhe são comuns quando do julgamento de outras espécies de conflitos. O interesse em manter a máquina estatal, que lhe sustenta e da qual faz parte, leva o Judiciário a encontrar fundamentos talvez incompatíveis com a ordem jurídica que se acredita estar sendo por ele aplicada, muitas vezes contrariando precedentes que ele próprio havia firmado em outros momentos. Isso sugere a necessidade de aperfeiçoamento das instituições jurídicas, não só as de direito material, mas sobretudo as de direito processual, ligadas às garantias da magistratura e ao financiamento do Poder Judiciário, no longo processo de tentativa e erro que os seres humanos aplicam, espelhando o processo de seleção natural, às ideias e às instituições culturais.
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